Balé das Gaivotas
CONCEPÇÃO DA EXPOSIÇÃO
Bailado no horizonte
A pesca artesanal na Bahia é a principal fonte de renda entre os habitantes de 64 municípios dos 417 que compõem o estado. Em sua maioria, as relações de trabalho são organizadas no seio familiar, havendo pouca ou nenhuma interferência de colônias de pescadores, associações e cooperativas. Os pescadores, marisqueiras e demais trabalhadores pescam, beneficiam e vendem peixes e mariscos à margem do sistema comercial institucionalizado. Formam, assim, um bloco paralelo que mantem a tradição pesqueiras na capital e no interior. Vale destacar que a Baía de Todos os Santos – enquanto maior baía navegável do litoral brasileiro – comporta grande número de pescadores artesanais e trabalhadores do mar. Além disso, pela importância histórica, cultural e biológica possui oito Unidades de Conservação Integral (UCI); uma sob administração do poder federal, quatro pelo estado e três em nível municipal.
Entre os distritos baianos, destaca-se as atividades exercidas na Ilha de Itaparica, maior área insular do Brasil, cujo território divide-se entre os municípios Vera Cruz e Itaparica. O lume recai especificamente sobre o distrito de Baiacu que desde 1602 – a partir da chegada da missão jesuítica do padre Luiz da Grã à contra-costa da Ilha – espalha-se por entre estuários e enseadas contornados por manguezais. Da conformação de lama, lodo, limo, apicuns e marés, há quatro séculos homens e mulheres comungam a faina diária da captura e beneficiamento de peixes, crustáceos, mariscos, moluscos, fazendo da comunidade uma das mais privilegiadas no que tange a diversificação de artes de pesca. Entretanto, este texto se baseia na pesca de arrasto de massambê e xangó, que cria postos de trabalho gera renda para pescadores e também para carregadores, escamadeiras, atravessadores, proprietários de redes e canoas, donos de restaurantes e similares. Por isso, a atividade pesqueira transforma Baiacu na principal referência de pesca artesanal na Ilha de Itaparica. O texto recorta, por meio da narrativa etnográfica e da poética visual, o papel das gaivotas na captura dos cardumes de xangó e, consequentemente, na manutenção de práticas de etnoconservação marinha e do sistema sócio-identitário da comunidade.
Atualmente Baiacu conta com oito tripulações de arrasto que se revezam na captura das referidas espécies; cada uma é comandada por um mestre proeiro, responsável em agenciar os demais tripulantes, denominados moços que se organizam nas funções de abaixador, largador de cortiça, largador de chumbo, pé de banco e popeiro. As remunerações – além do quinhão de pescaria – correspondem à função exercida na canoa, sendo que ao mestre cabe o maior percentual dos valores arrecadados. Nos casos em que o mestre não é dono dos meios de produção como canoa, rede e demais artefatos, fica também responsável pelo repasse do valor equivalente aos devidos proprietários.
Sob o comando de um mestre, as tripulações deixam o porto por volta das 04h, quando ainda a lua se alinha às primícias solares. A depender das condições de vento e maré, as embarcações podem ser impulsionadas a remo e/ou à vela em busca de cardumes indicados pelas gaivotas. Ao amanhecer elas aparecem solitariamente ou em pequenos grupos e na penumbra da madrugada os pescadores divisam-lhes as silhuetas em rasantes vôos sobre águas ainda turvas. Enquanto aguardam que bailem no horizonte, os tripulantes saboreiam o frescor da manhã, só o mestre fica a postos, de pé sobre a popa da canoa, atenta à direção em que mergulham. Quando emergem, o mestre identifica se portam ou não a presa no bico e na milimétrica fração de segundo entre o momento da emersão e o da deglutição da presa, decide como deslocar a canoa até o ponto indicado. Assim, sob o comando de voz e o indicativo gestual – “uma gaivota caiu chumbada ali” – os tripulantes começam a remar. Divisam as condições de maré, vento, correntes, antes de iniciarem a formação do cerco embarcado ao lançarem as redes que garantem o sustento diário.
As aves indicam o ponto exato de onde deve iniciar o cerco mantendo estreita simbiose com os pescadores até o momento em que o cerco é fechado e iniciam-se os movimentos de recolha das redes e do embarque do pescado. Uma vez efetivada a captura, o horizonte se avoluma com a presença de ruidosos bandos que sobrevoam a embarcação à caça dos bocados que sobejam as redes. Com o pescado embarcado, os tripulantes lançam novamente as redes ao mar para lavá-las, acomodá-las no interior da canoa e retornarem à terra. Ao longo do percurso, sobretudo quando fartam expectativas, bandos menores servem de batedores às embarcações até que divisem o porto do desembarque, onde mulheres festejam: “naquela canoa tem peixe, olhem quanta gaivota vem em cima!”.
Gal Meirelles
pequeno voo para ensaio fotográfico
Igor Rossoni
Aqueles olhos. Este olhar. E o movimento se perpetua, isento d’espaço e tempo que lhe servem de sustento.
Entre olho e olhar, asas deslocam-se em pleno desalinho perspectívico, compondo trajetória que só mesmo leve sonolência concebe comunhão. E são mesmo percursos-devaneios os que neste agora – entre noticiários e nascimentos; mortes e breves suspiros – olhos encontram repouso – aos poucos – no desacostumo da ordem do esperado: pássaros sobre fundo qualquer: paisagens.
Não. Não se pode dizer qu’esses arabescos emplumados sejam pássaros de fato. Não o são. A ação de capturá-los por intermédio da fixidez de feliz-instante os permitem para além do que realmente aparentam ser. Se pássaros não são, decaem para a fertilidade de quase- serem. Assim: algo-de-asas unta-se a um tanto de voo e desta fugaz insinuação revela-se o que permanece: o pássaro sem-pássaro dentro; ave-menos que alça voo pelos entre-ares de plenitude e movimento.
Diante dos olhos, o horizonte se permite mais de perto. Está no logo ali, agonizante à espera que não vem-e-vem e se aproxima e ronda mil volteios e pequenas diabruras; proseia por leves pensamentos visuais e pega voltar aos tempos de criança. Olhos-agora-meninos. Voo: é lampejo de lápis – rabiscos – metáforas de horizontes. À frente – muito adiante para cá – o pássaro pensa.
O olhar apruma tino. Dejeta ordem visual de coisa. E clic. Copula-se entre a aspereza de manhãs e salgadas agudezas: o mar. No desvão, borras impregnam a tela de composição e – como céu que recurva inteiro sobre si – adquirem consciência de perenidade e deslimites; mundo e bordas e para além delas interligando espaços reais e representacionais. Assim, pássaro sem-pássaro dentro retoma sentido e vitalidade reais e a imagem que dispomos à frente agora não é mais-nem-menos que a de pássaros que gostaríamos de ser. De voos que apreciaríamos por demais experimentar: grandes olhos despertos e sopros de vendavais e cabelos aos desalinhos; lívida sensação de eternidade. Plenitude. Girassóis.
Silencie – então – olhinhos teus. E destine viagem-bailarina. Deite olhar sobre-desde; desde dentro e – como o poeta-fotógrafo – fotografe o silêncio que emana dessas imagens entre-ausentes; o que há nelas de mais real, compensador e reconfortante: a presença quase-menina das pupilinhas; olhinhos-criança de Deus.
Estão bem ali, onde aquilos; que – apesar de tudo – insistimos em querer de gaivotas.